10 outubro 2024

cátias

 as cátias são um tipo muito específico de amigas, obedecem a certas regras, a mais importante delas ser conhecerem-se há pelo menos vinte anos, o grupo pode ser maior, e podes não conhecer toda a gente nele mas desde que exista uma amiga que seja tua há mais de vinte anos podes pertencer,

as minha cátias são só duas, mas obedecem à dita regra, calma, como é possível ter amizades de vinte anos?, estou a ficar velha, as minhas são a ana e a mónica, conheci-as no sétimo ano da escola grande, a moni já conhecia de vista da escola pequena, a nina não, estas alcunhas que perduram também há vinte anos, eu sou a martinha, sempre fui, ao contrário do que a minha assinatura neste blog possa indicar, martolas foi mais um produto da minha arrogância adolescente, e como éramos arrogantes!, 

eu e a nina, principalmente, pois a moni sempre foi mais sensata, na idade da parvoíce notava-se mais essa diferença, mas não era nem de perto suficiente para deixarmos de ser melhores amigas, eu e a nina mais tolas, sem dúvida, a cantar sam the kid nos bancos de trás do autocarro, ou valet, ou xeg, a moni dividida entre admiração e fingir que não nos conhecia, anos depois desejei ter sido tão sensata como ela era, enfim, aprendemos com a idade,

fomos para uma colónia de férias, ou lá o que foi, e a nina partiu logo a cama ao atirar-se para cima dela, acho que nessa noite também fez a depilação às pernas numa altura em que a depilação era uma coisa muito adulta para mim, lembro-me dum blusão azul clarinho que era a jóia dos olhos da moni, custou um balúrdio, o que seria um balúrdio para nós na altura?, lembro-me das calças à boca de sino, à boca de sinão mesmo, a parte debaixo a ficar molhada com o passar do dia a andar à chuva,

éramos as melhores da turma, a nina craque a matemática, no décimo ano separamo-nos todas e aí foi quando mais senti falta delas, claro que só me apercebi muito tempo depois, andava muito sozinha, fumava ganzas e isolava-me, passava a semana a desprezar a minha turma de vinte rapazes e eu uma de cinco raparigas com as quais tinha zero em comum, pior que isso, passava a semana a desprezar a preocupação das minhas cátias, precisamente por andar sozinha e por fumar ganzas, acho que me senti abandonada na altura, é claro que elas não tinham culpa e eu só estou a refletir agora,

felizmente, passado uns anos, depois do secundário, voltámos a reunir-nos, com um quarto elemento deste grupo, acho até que ela foi a motivadora deste encontro, e percebemos a parvoíce que era estarmos separadas, e era chás e nachos no hemingway, no meio de três faculdades diferentes e outros afazeres do início dos vinte, encontrávamos sempre tempo para nos vermos, e assim foram passando os anos, dez, doze, vinte!

agora, somos formadas, elas têm casa comprada, marido e namorido, uma vida estável, todos os anos vemo-nos quando estou em portugal, e já vários anos vieram visitar-me aqui, este ano talvez o mais especial de todos pois todos os nossos filhinhos nasceram em 2024, sabem como as mulheres que vivem próximas alinham a menstruação?, ora, nós de amigas somos o mais próxima que há, alinhámos os nossos rebentos?, eles que serão invariavelmente os cátios das próxima geração, que maravilha

28 setembro 2024

Alzira

 quando nos conhecemos um pouco melhor, achei destino as nossas duas avós se chamarem Alzira, a minha uma de dez irmãos, todos tocavam piano, alguns fizeram disso profissão, a minha avó foi bailarina até dançar com o meu avô num hotel onde estava hospedada com sua mãe, foi bailarina até essa noite, no dia seguinte foi pedida em casamento e quatro filhos e três netas depois vim eu, depois de mim outros seis netos, uma grande família, portanto

a minha avó, quando ainda andava de avião, quando o pânico de espaços fechados ainda não tinha tomado conta, vinha visitar-nos a portugal, ficava na pérgola house em cascais, em frente ao santini, rodeada de bougainville como ela gosta, das primeiras memórias que tenho é de passear de mão dada com ela no parque da gandarinha, ela a contar-me histórias dos gnomos que viviam na vegetação rasteirinha, ainda hoje quando vejo esse tipo de planta procuro os gnomos, uma vez, em vez de ir para casa de taxi, apanhámos uma daquelas carroças turísticas puxadas por cavalos tristes, achei a maior excentricidade, 

em são paulo, num dos apartamentos, brincar com ela numa casinha de plástico no playground do prédio, de levar lá para baixo cenouras pequeninas para o coelhinho que lá vivia e de no dia seguinte já não haver cenouras, se foi ela que as tirou ou se alguém do prédio limpou nunca saberei, nesse apartamento lembro-me de olhar para as formigas em fila a caminho do açucareiro, como é que elas chegavam ao décimo quarto andar?, era uma filinha determinada a subir pela perna da mesa, enquanto a vovó contava uma história de um pato que acabava sempre por ficar com o bico colado, nesse apartamento, ou no próximo, ou no anterior, havia um walk-in closet que era o reino das brincadeiras, vestíamos os seus casacos com ombreiras e com pêlo verdadeiro, à volta do pescoço usávamos lenços de seda hermès, esse closet era a sede dos nossos planos de acordar à meia noite para fazer um assalto ao frigorífico, nunca acordávamos, mas o planeamento era excitação suficiente, quando acordávamos inevitavelmente às seis da manhã por causa do jetlag, para acordar a vovó era só ir ao quarto dela e puxar o seu pé, um pé pequenino com joanetes, do ballet, talvez?, ficávamos a tentar desenvencilhar os seus dedos dos pés, ela acordava e fazia-nos bolo de limão com calda de açúcar, 

mas o melhor era o sítio, a casa no campo, vê-la no seu elemento no jardim, todos os anos havia uma tour do jardim e era mesmo lindo, nos anos de seca em que recomendava-se poupar água, era ver a minha avó a regar as suas rosas sem uma preocupação no mundo, havia uma cozinha de dentro e uma cozinha de fora, e ela a fazer bolinho de chuva com os restos do arroz de ontem, nós esfomeados depois de correr no jardim, que delícia, no frigorífico havia sempre sumo de uva e água de côco, e no congelador sempre kibon de chocolate, sempre que nós lá estávamos pelo menos, os sons dessa casa eram distintos, a voz dela carismática a contar histórias do passado, toda a gente a morrer de rir com o seu humor deadpan, se não estava a contar uma história ouvia-se o clique clique delicado das agulhas de tricot a bater uma na outra, ela sem perder o fio à meada, literalmente, clique clique clique, enquanto ouvia a família conversar, éramos fonte de orgulho, íamos jantar fora e ela apresentava-nos como os netos portugueses. havia os italianos, os japoneses, a família internacional, mas o maior orgulho era o seu grande amor, o Dado, mais de setenta anos juntos, pouco mais consigo escrever sobre isso sem me esvair em lágrimas, fica para outro dia,

ainda queria falar do piano, quando era bailarina e não havia pianista nos ensaios, lá saltava ela, nunca soube ler uma nota, e tocava qualquer música que lhe pedissem de ouvido, à moda antiga, com saltos oitavado nos baixos e harmonias jazzísticas dos anos cinquenta, as cadências finais sempre uma substituição tritónica, desculpa a especificidade, leitor, nem ela sabia o que isso era, simplesmente tocava, o que quisesses, e sempre em fá maior, eu ficava horas a ouvi-la, a pedir outra, toca aquela, 

foi a primeira dos meus avós a morrer, depois de uma vida preenchida de 91 anos, àquele monte de filhos e netos juntaram-se ainda duas bisnetas, passou na quarta para o descanso merecido, o luto é uma coisa estranha que vem por ondas, e embora eu nunca vá esquecer-me dela, há dias que as memórias pedem para serem eternizadas fora de mim, e onde melhor do que aqui

18 junho 2024

PPD

 pós

é o que vem depois, e também o que fica mais ou menos perpetuamente, uma impossibilidade, eu sei, nos rodapés e em cima das molduras dos quadros da minha casa, há uns 14 anos andava em tour com a clara andermatt a fazer, pronto, cantar, numa ópera e pintávamos os pés com um pó dourado, um dia acabou o pó e a assistente dela a dizer, ó clara, já não há pó, elas a rirem-se e nós naquela incerteza dos dezanove anos de uma vida relativamente protegida, também é isso pó

parto

uma palavra interessante, pressupõe uma partida, ou uma quebra, e é, uma quebra de tudo o que era dantes, uma quebra irrevocável, paradoxal é querermo-la muito e ficar de luto quando ela vem, de luto pelo que éramos e nunca mais vamos ser, nunca mais vou não ser mãe, e isso é assustador e maravilhoso em medida quase igual, ao processo de criar vida chamamos rotura, da outra vida de certo

depressão

é um buraco, no fundo, a vida vai andando em topografia relativamente homogénea, e depois a grande quebra, como se fosse um terramoto que alterasse a nossa geografia emocional, não só adicionando todo o tipo de buracos inesperados mas também virando o chão em céu e o céu em chão, uma espécie de terramoto tridimensional, a esperança é que os buracos fiquem cada vez mais rasos, de maneira a ser preciso apenas um passinho para sair deles 

15 fevereiro 2023

conforto

 há uma zona disso, sabias, e eu ando ultimamente a viajar bem fora dela, a tentar chegar perto da linha fronteiriça a partir da qual já posso respirar, a partir da qual não me sinto uma representação fraudulenta de mim mesma, sempre fui um pouco dramática, isso já sabias,

tenho uma tendência um tanto quanto masoquista de dizer que sim, sempre que sim, mesmo começando o ano a estabelecer claramente que vou dizer mais que não, chego a esta altura, mais ou a menos a meio, atenção, falamos aqui de anos letivos, até parece que não sabes que é assim que o meu calendário é gerido (esta volta toda para não conjugar o verbo gerir na primeira pessoa), chego a esta altura e já pouco respiro, as costas num nó, o calendário a relembrar-me que já só faltam três semanas para as férias, e que até lá não há um único dia completamente livre, onde já se viu, 

se fosse um amigo meu, não hesitaria em condenar este tipo de comportamento, nocivo, intensivo, mas cada vez me esqueço de ser amiga de mim mesma, pois que chega esta altura do ano e eu estou perto de um breaking point, sinto as costas num nó ou um nó nas costas cada vez que respiro fundo, uma montanha de tarefas por fazer e pouca vontade, muito pouca, 

tipo hoje, não fui trabalhar, porque me sinto overwhelmed, já sabes que isto aqui é em várias línguas, e não te queixes pois ainda não comecei meter palavras em alemão, e poderia ter aproveitado o tempo para adiantar tudo o que tenho para amanhã, mas em vez disso já li o meu livro, um blog, as notícias, lavei roupa, fui com o cão à rua, fiz o almoço, respondi a alguns e-mails, e estou a escrever este post, 

ainda tenho um monte de coisas para fazer

(isto é uma espécie de diário, certo?)

neste momento eis a minha vida de trabalho

20 horas lectivas de aulas numa escola secundária, mais 3 de reuniões obrigatórias, mais 2 de substituição, mais 6 de preparação e correção em casa, 2 horas a dirigir o meu coro amador, mais 1 hora de preparação, mais 8 horas a dar aulas privadas de canto e piano, aqui já vai uma semana laboral de 42 horas

como se não bastasse, aceitei mais um trabalho louco a dirigir um coro a alto nível onde sinto que preciso de dez horas para preparar cada ensaio,

aos fins de semanas tenho ensaios onde canto eu num coro e ocasionalmente ensaios com o meu guitarrista num projecto a dois, uma vez por mês uma aula de canto, propus-me a fazer todos os dias 15 minutos de italiano e estou a treinar para uma meia maratona

é de loucos, não é? eu sei. 

se esse ponto final não demonstra a seriedade com que estou a encarar esta situação, então não me deves conhecer muito bem, 

espero vir cá daqui a pouco tempo e dizer, que louca, Marta, que estupidez, ainda bem que deixaste de fazer x/z/y

já não é abstrato, agora é começar a andar, vamos, um pé pequenino à frente do outro

30 outubro 2022

bebés

 estamos na fase dos bebés

todo à nossa volta querem, têm, estão a tentar, e o tema vem demasiadas vezes à conversa com demasiadas pessoas, apesar de eu achar ser um tema para algumas conversas com poucas (e boas) pessoas,

tenho duas amigas que estão a tentar, uma há pouco mais de meio ano, outra há quase dois anos, as duas lidam com a culpa irracional do seu próprio corpo não conseguir gerar outro, como se isso 1, fosse responsabilidade inteiramente da mulher e 2, como se isso não fosse um milagre da natureza por si só,

uma série de coisas tem que acontecer primeiro, primeiro tens que conseguir ovular, o que para a minha geração pilulodependente já tem que se lhe diga, depois tens que acertar bem nos timings, não fazer amor em demasia, mas também não de menos, e nada de fazer um horário, sexo espontâneo para não perder a chama mas de preferência nos dias certos, ok? antes disso claro que deves evitar café, álcool, açúcar, deves emagrecer, mas não ficar muito magra, não podes fazer desporto em demasia, deves estar o menos estressada possível, como se fosse possível, na geração que mal consegue pagar a sua própria renda, parar de trabalhar e fazer um retiro espiritual e biológico até à fecundação, pff,  

depois dessas coisas, contas os dias até ao P-Day, imaginas todos os sintomas e mais alguns, vais ver online e tudo pode ser uma gravidez ou o período fértil ou a menstruação ou cancro, no final é sempre cancro com o dr. google, e é ver-te chorar de frustração ao ver as cuecas vermelhas, quando ainda há uns poucos anos chorava-se de alívio, tudo muda, é ligares às tuas amigas e não querer falar ainda mais duma vez sobre o quão triste estás, e é ouvi-las a não entender essa obsessão, se não estão como tu, ou a oferecer um silêncio igualmente triste mas reconfortante de quem está exatamente como tu, 

uma engravidou para abortar sem intenção um mês depois, imagina

outra engravidou por enganou e abortou de propósito, e é ter coragem para o fazer depois dos 30, sabendo que serás fortemente julgada, pois já passaste da idade ideal, mas pergunto-me, se não estamos felizes na nossa própria vida independente de fetos e bebés, como o poderemos ser com um agregado?, o que é tão difícil de entender que um bebé pode não ser uma felicidade?

já abro portas para polémicas, sheesh

outra carregou um bebé durante oito meses e meio para dar luz a uma menina morta, não dá nem para conceber este tipo de dor


por isso, quando perguntam e bebés? quando é que têm filhos? fico entalada no meio destas realidades todas que se escondem atrás da pergunta aparentemente inocente, mas que na verdade é das coisas mais íntimas que se podem perguntar, conversa corriqueira a disfarçar a cusquice, não se pergunta a toda a gente, pensa-se duas, três ou quatro vezes, e maior parte das vezes a resposta vem apenas quando nada perguntamos,

já a mim irrita-me quando me perguntam se estou grávida, porque estou com uma barriguinha feliz de quem comeu bem ao almoço 

18 julho 2022

cascais

 cascais é quando apanhas o comboio, lento l e n t o,  no cais do sodré e a paisagem lá fora vai ficando cada vez mais bonita, primeiro o rio, os pastéis e o turismo massificado, restos de um palco de um festival,  depois aquelas terras que achava mais sem sal, mas agora quem me dera conseguir comprar uma casinha ali, entras na urbe, vais por dentro, há prédios feios com marquises fechadas, tão característico de portugal, a partir de são pedro libertas-te do cimento e é só azul, infinito no horizonte, às vezes cinzento, poucas vezes verde, e é ver os turistas, e eu, deslumbrados a olhar lá para fora, e os locais a olhar para dentro, telefone, poucos livros, já sabem como é, este post não é sobre isso, depois disso, casino e uma certa ostentação no estoril, no outro dia disseram-me, nem toda a gente que vive no estoril é rico, ah pois, comprar casa só com paitrocínio, o monte é pequeno e idílico, certamente romantizado na minha visão de ex-monte-estorileana, de certo que não lhe achava tanta piada quando estava no escuro à espera do comboio às seis da manhã, 

depois é cascais

terra da minha infância, de sábados a almoçar fora, gelado no santini e ficar, na minha percepção de pessoa pequena, ficar horas a ler bandas desenhadas empoeiradas na loja de livros em segunda mão, enquanto os meus pais ficavam horas a ler outros livros no andar de cima, antes disso ainda, quando não havia irmãos, ir com a minha mãe almoçar ao frutalmeidas, agora é um café gentrificado, quando a minha mãe me vinha buscar à creche com uma t-shirt da greenpeace, significava que íamos à praia, a descer os montes de são joão e eu com medo dos cães que se atiravam aos portões, quando os meus avós ainda visitavam ficavam na pérgola house, já na altura muito charmosa, hoje é um hotel boutique, mais labels de hoje em dia, ainda antes disso ir ao chinês com vista para o mar e o cozinheiro preparar logo uma 'sopa de massinha' para mim, andava eu entre as mesas, enquanto os meus pais jantavam em paz, a apresentar-me 'olá, sou a marta e tenho dois anos e meio', mostrava dois dedos e meio, caso não percebessem logo, a cozinha do restaurante era preta e eu tinha medo, mas atrás do bar recebia sempre um chocolate negro de sobremesa,

cascais

é sobretudo terra da minha adolescência, horas passadas atrás de um balcão de uma loja onde eu não trabalhava, cheguei de repente nesse grupo de pessoas, simpática e otimista, mas as betas que já lá estavam não gostavam nada de mim, tratavam-me mal, eu pouco me importava mas também não lhes respondia, hoje em dia tenho pena, delas, e de não ter respondido, enfim, tinha uma banda com o david da loja e o rudra e o gonçalo gordo, era a única rapariga e sentia-me super cool, tentei namorar com um betinho que achava um giraço mas não tínhamos nada em comum, ainda tentámos alguns meses, fartava-me de fumar, como era moda na altura, hoje em dia fumar está out, ainda bem, e parece que triatlo está in, ainda bem, era ir ao hemingway na marina beber chá de menta e comer nachos com queijo até às três da manhã, acho que já nem existe esse sítio,

hoje cascais são memórias vivas, as mesmas sensações quando passo pelos mesmos sítios, alguns já não são mesmos, algumas pessoas continuam, o sr. chico das sandes, o carlos a tocar na rua, o david na loja, o senhor francês dos cachorros que ainda se lembra de mim, e é ver as faces iluminadas quando se lembram, ou relembram, e eu, como a lua, reilumino-me também

11 junho 2022

stress

 comum a todos nós, diverso nas suas manifestações e nas suas origens, maioritariamente, tantos is numa só palavra, voltei atrás para perceber se tinha que escrever is com um apóstrofe entre as letras, um erro que eu sempre abominei, esse genitivo sem explicação, também encontrado em CD´s, e agora olha só, tentada a sucumbir, notei a tempo, 

para mim, as origens são sempre ou muito óbvias ou tão gritantes que não as levo a sério, pelo menos até atingir um cúmulo físico, já lá vamos, que me obriga a fazer o trabalho mental, porque é que isto está a acontecer,

cúmulos físicos, adoro a elegância das palavras esdrúxulas, outra!, o chico buarque tem uma música, outra!, inteira de palavras esdrúxulas, quem me dera escrever músicas assim, mas o meus cúmulos físicos são bastante comuns, aquela rigidez na base do pescoço, dói-me o maxilar de ranger os dentes, aftas, de vez em quando uma dor no meio das costas que não me deixa respirar fundo, a minha cabeça explode em dermite ceborreica, ou como eu chamava em mais pequena, casquinhas que dão prazer de ficar a remexer, uma vez ou outra uma reação acneica ao stress, no primeiro ano de pandemia demorou meses de tratamento até passar, e sem falar das enxaquecas que permeiam a minha testa, quando só dormir me liberta delas, e, finalmente, a herança da qual menos me orgulho, uma persistente e dolorosa borbulha interior no nariz,

este texto está gráfico, outra!, e um pouco nojento, mas vou seguir este caminho, espero que melhore,

sobre as origens não falarei, já que isso é muito mais difícil do que me queixar das minhas maleitas físicas,  portanto vamos às coisas que (me) ajudam,

sair de casa e conectar-me com a natureza, nada de esotérico aqui, simplesmente buscar conforto na palpável passagem do tempo da natureza, no seu ritmo inabalável e inevitável, se está mais calor este ano, as plantas irão florir mais cedo, simples assim, 

arrumar o meu espaço envolvente deixa mais espaço na minha cabeça, leva tempo, arrumar, e faço com as mãos sem exigir muita coordenação motora, parece que com cada esfregadela, com cada documento arquivado, adoro arquivar, se abre uma janelinha de ar fresco na minha cabeça,

reflectir sobre o stress, esta não é fácil, é melhor fazer a dois, ou a três, mas isso envolve uma potencial subida a pique de tormentas, é preciso estar preparado, mas depois da tempestade, a bonança, hmm, saiu clichê, mas vou deixar, assim como a nada característica onomatopeia, e portanto depois do auge há sem dúvida um alívio,

podes comprar um daqueles aparelhos de massagens para te aliviar a dor nas costas, mas o melhor é encontrares alguém com quem possas sempre reflectir sobre o teu stress, assim, para a vida, sabes

27 março 2022

dormir

 quando era bebé diziam-me abençoada, bebia dois biberões - diz-se bibrão mas escreve-se biberão, ontem um romeno ao jantar dizia que para falar português bastava engolir todas as vogais - e dormia das seis da tarde até às seis da manhã, os meus pais puderam ter jantares a horas adultas, pelo menos até vir a minha irmã,

em criança ia dormir às oito, o que em comparação com os meus amigos da escola era cedíssimo, uma vez li uma review no tripadvisor dum café no Algarve de um alemão chocadíssimo que à meia noite ainda havia crianças por ali, indignado que o bem estar das ditas cujas não estivesse a ter tido (ui e esta voltinha?) em consideração, deu-me uma raivinha da pequenez, da ignorância, de não admitir outros costumes diferentes dos nossos, digo isto do alto da minha hipocrisia porque quando é para reclamar dos alemães sou a primeira a dizer, epá isso foi mesmo german, o que por si só é completamente desconexo pois uso outra língua para desdenhar duma terceira, um bocado como os poetas de karaoke do sam the kid,

quando era adolescente dormia doze horas sem problema algum, às vezes treze, e dentro das várias asneiras que fiz enquanto adolescente, como quando os meus pais me apanharam a fumar haxixe e achavam que eu era toxicodependente, ou quando fui apanhada em casa com o meu namorado da altura e fiquei sem chaves de casa durante um mês, não sei se por ser a mais velha fiz as asneiras todas e defini os limites do aceitável perante os meus mais do que compreensivos pais, ou se os meus irmão aprenderam a fazer estas coisas muito melhor escondidos do que eu, agora somos adultos e nada disto interessa, mas dormir doze horas é um feito do qual ainda hoje me orgulho, como era possível dormir tanto tempo,

nos início dos meus vinte, dormia cinco horas, trabalhava outras tantas, ia à faculdade, tinha ensaios mil e concertos e acho que o sono era irrelevante, pois nutria-me à base de realização artística (da qual convenientemente só hoje tenho noção), amor e ignorância arrogante e juvenil, por isso dormir nunca foi assim tão importante,

hoje em dia não há nada que goste mais do que estar na cama, depois de lavar os dentes e tirar as lentes, às nove e meia da noite, mala pronta para o dia de amanhã, cozinha arrumada, a hora a que me levanto no dia seguinte pode ser seis, sete, oito ou até independente de despertador, mas estar na cama a uma hora para mim decente significa ler mais meia hora, seja Ana Karenina, que confesso que vai a 30% desde o verão passado, seja um romance histórico, ou um romance daqueles mesmo maus, nada é melhor do que sentir os olhos a fechar e ver que são dez e dezassete e que há pelo menos sete horas de sono ininterrupto até ao amanhã,

por isso vou arrumar a cozinha, lavar os dentes, tirar as lentes, e dormir, hoje mudou a hora por isso é como se fosse dormir lá pelas nove e meia, bem como eu gosto

16 fevereiro 2022

perder peso

 perder peso é sempre uma variável na equação da vida de uma mulher, seja em que fase for, seja em que mulher for, temos sempre esta coisa a pairar à nossa volta,

digam-me que é construído, convenções da sociedade moderna, antifeminista, sim, pode ser, não discordo, mas a verdade é que está lá, mesmo quando achamos que estamos bem, hovering in the background, 

eu tenho o problema, problema entre aspas, tá, de ser pequena, nem um metro e sessenta, visto um 36 ou um 38, por isso parece que me estou a queixar de barriga cheia quando digo que preciso perder peso, as pessoas olham-me incrédulas, altivas, a achar-me mimada, desconectada da realidade, etc, etc, e aí perco a vontade de explicar, que não me sinto bem, que não quero ter uma barriguinha, não quero que me perguntem se estou grávida, não quero que a mãe da Ana me diga sem qualquer tipo de sensibilidade, depois de não me ver há anos, estás mais gorda!,  não quero que a minha mãe me chame fofinha, não quero sentir o meu papo quando estou a ler deitada, quero poder vestir um biquini sem me sentir mal, falar com as minhas amigas em portugal no FaceTime e não me perguntar como é que todas ficam tão magras, e por aí fora,

ninguém me pode dizer o que me faz sentir mal

sempre gostei de fazer desporto, fazia natação em adolescente, uma vez fui à reboleira fazer estafetas em competição, devia ter uns quatorze anos, estava com o período e não tinha muita experiência com tampões, ganhei o corta-mato na escola, fiquei em nono no regional e espalhei-me no distrital, havia muitas subidas e descidas, aqui na Alemanha já corri duas vezes uma meia-maratona, quando tinha tempo para treinar essas coisas, quando vais correr 15km tens que ter mais de uma hora para treinar, sabes, enfim, não me custa(va) fazer desporto,

também gosto muito de comer, vivo com alguém que também é assim, e isso influencia, bom, tudo na minha jornada de perder peso, não posso com dietas, as poucas vezes que me rendi, acabei sempre por ganhar imenso peso a seguir, quando fui viver sozinha a primeira vez, erasmus na hungria, engordei 7kg em três meses, não liguei nada, apesar de me lembrar de comentários de quando ainda estava no facebook, alimentadinha como eu gosto, que raio de coisa de se dizer, cheguei a portugal e emagreci tudo outra vez, tinha dezanove anos,

agora tenho trinta e alimento-me melhor, há sempre verduras às refeições, à noite muitas vezes uma sopinha, só há chocolate negro em casa, o meu Fitbit diz-me para beber água, antes de ficar em casa três semanas por causa do vírus estava a correr e a nadar, quando não chove chego a fazer 50km de bicicleta por semana,

não perdi peso nenhum

 e dizem, ah, o metabolismo, ah, o peso não é tudo, ah, ah, ah, e eu estou farta de tentar e ter motivação para três dias e pedir takeaway no quarto, porque nada muda, é uma frustração sem igual, enraizada já no próximo surto de agora é que é, beach body, não ter roupa apertada, fechar os casacos sem ter que encolher a barriga, sentir-me sexy, essas coisas

nunca escrevi tão concretamente sobre isto, estou sempre a tentar coisas novas para dar a volta à minha estagnação, por um lado quero que me contes as tuas experiências também, por outro, sou teimosa e sei que nada do que funcionou para ti vai funcionar para mim, já experimentei tudo, 

isto é só arrogância e inércia, não leves a peito, beijinhos

11 fevereiro 2022

dificuldades

 de voltar a escrever

para já, digam o que disserem, tenho a cabeça cheia de inutilidades - atenção que isto é culpa minha, por exemplo, estou a escrever isto e como música de fundo tenho frações de canções (isto é um bom nome para uma canção) daqueles vídeos virais do tiktok, agora, o mais triste é que eu não tenho tiktok e o que vejo são reposts no instagram, as chamadas reels, das quais sou capaz de consumir durante horas do meu dia, negoceio sempre, vejo só até x hora, e quinze minutos depois aparece a notificação de que já ultrapassei o meu limite de tempo nessa rede social, e eu, ignoro, ignore 15 minutes, ignore for today, ignore forever, eu ignoro e fico horas a ver reel atrás de reel, num misto de vergonha alheia e entretenimento, incomodada com o volume excessivo das vozes computadorizadas que tanto se usam, a experimentar e a nunca postar os filtros que me fazem magra, morena, produzida mas nunca bonita, 

numa lista que fiz num caderno que já tenho desde janeiro de 2019, ainda nem cheguei a meio, antes os cadernos duravam-me seis meses, enfim, nessa lista enumerei hábitos que sei que são bons para mim, e lá no topo está: respeitar os limites de tempo que defini para mim própria nas redes sociais e a seguir, em gordo e com vários pontos de exclamação: no reels, escrevi a dia 16 de outubro 2021, não está a correr bem,

outra dificuldade é que muito raramente escrevo em português estes dias, sinto que estou enferrujada, também raramente leio em português, por isso falta vocabulário, as regras gramaticais são um misto de três línguas muito distintas, como se não bastasse, o meu computador tem um teclado alemão, e sim, claro que mudei para o português para escrever isto, mas, por exemplo, para escrever não, há toda uma série de tentativas de encontrar o til por detrás de um umlaut, ou o c cedilha, no início do texto comecei logo à grande com a palavra atenção, foi assim

atencao

aten~cao

atenç\ao

atenção

a terceira dificuldade é precisamente a atenção, distraio-me facilmente, tenho dois rascunhos recentes que nunca cheguei a acabar de escrever, tenho vários textos nos quais perco o gás a meio, dá-me preguiça de continuar, antes escrevia com fervor, com urgência, agora parece que só escrevo o tamanho de uma reel, se isso sequer for traduzível dessa maneira, tu percebes, não perdi a vontade de te tratar por tu, espero que não te importes, 

escrevi metade deste texto e já me apetecia desistir, por isso fui arquivar todos os textos que aqui estão há dez anos, pois como todos nós quero apresentar uma imagem muito bem orquestrada de mim, chama-lhe procrastinação, porque é isso mesmo, arquivei, não apaguei, como fiz da última vez que me deu de reinventar, apaguei para todo o sempre, anos de escritos da minha adolescência, do início dos meus vinte anos, preciosos testemunhos da mulher que sou hoje, e arrependo-me, por isso arquivei, não apaguei

a ideia, nunca obrigação, é fazer uma crónica semanal, temas soltos, textos corridos, como era de costume, se não for semanal, tudo bem, mas essa é a ideia, sempre disse que isto são desabafos, que isto é um diário, nunca pensei em ti, mas adoro ler-te, adoro ver-te a ver-me e estimo essa troca de ideias, prometo ter-te mais em consideração, quem sabe 

ia escrever, quem sabe até venho a ter um hater, mas achei uma frase de merda,

uma pequena dificuldade é haver um cão a reclamar por eu estar muito tempo à frente de ecrãs, por isso vamos agora brincar