28 setembro 2024

Alzira

 quando nos conhecemos um pouco melhor, achei destino as nossas duas avós se chamarem Alzira, a minha uma de dez irmãos, todos tocavam piano, alguns fizeram disso profissão, a minha avó foi bailarina até dançar com o meu avô num hotel onde estava hospedada com sua mãe, foi bailarina até essa noite, no dia seguinte foi pedida em casamento e quatro filhos e três netas depois vim eu, depois de mim outros seis netos, uma grande família, portanto

a minha avó, quando ainda andava de avião, quando o pânico de espaços fechados ainda não tinha tomado conta, vinha visitar-nos a portugal, ficava na pérgola house em cascais, em frente ao santini, rodeada de bougainville como ela gosta, das primeiras memórias que tenho é de passear de mão dada com ela no parque da gandarinha, ela a contar-me histórias dos gnomos que viviam na vegetação rasteirinha, ainda hoje quando vejo esse tipo de planta procuro os gnomos, uma vez, em vez de ir para casa de taxi, apanhámos uma daquelas carroças turísticas puxadas por cavalos tristes, achei a maior excentricidade, 

em são paulo, num dos apartamentos, brincar com ela numa casinha de plástico no playground do prédio, de levar lá para baixo cenouras pequeninas para o coelhinho que lá vivia e de no dia seguinte já não haver cenouras, se foi ela que as tirou ou se alguém do prédio limpou nunca saberei, nesse apartamento lembro-me de olhar para as formigas em fila a caminho do açucareiro, como é que elas chegavam ao décimo quarto andar?, era uma filinha determinada a subir pela perna da mesa, enquanto a vovó contava uma história de um pato que acabava sempre por ficar com o bico colado, nesse apartamento, ou no próximo, ou no anterior, havia um walk-in closet que era o reino das brincadeiras, vestíamos os seus casacos com ombreiras e com pêlo verdadeiro, à volta do pescoço usávamos lenços de seda hermès, esse closet era a sede dos nossos planos de acordar à meia noite para fazer um assalto ao frigorífico, nunca acordávamos, mas o planeamento era excitação suficiente, quando acordávamos inevitavelmente às seis da manhã por causa do jetlag, para acordar a vovó era só ir ao quarto dela e puxar o seu pé, um pé pequenino com joanetes, do ballet, talvez?, ficávamos a tentar desenvencilhar os seus dedos dos pés, ela acordava e fazia-nos bolo de limão com calda de açúcar, 

mas o melhor era o sítio, a casa no campo, vê-la no seu elemento no jardim, todos os anos havia uma tour do jardim e era mesmo lindo, nos anos de seca em que recomendava-se poupar água, era ver a minha avó a regar as suas rosas sem uma preocupação no mundo, havia uma cozinha de dentro e uma cozinha de fora, e ela a fazer bolinho de chuva com os restos do arroz de ontem, nós esfomeados depois de correr no jardim, que delícia, no frigorífico havia sempre sumo de uva e água de côco, e no congelador sempre kibon de chocolate, sempre que nós lá estávamos pelo menos, os sons dessa casa eram distintos, a voz dela carismática a contar histórias do passado, toda a gente a morrer de rir com o seu humor deadpan, se não estava a contar uma história ouvia-se o clique clique delicado das agulhas de tricot a bater uma na outra, ela sem perder o fio à meada, literalmente, clique clique clique, enquanto ouvia a família conversar, éramos fonte de orgulho, íamos jantar fora e ela apresentava-nos como os netos portugueses. havia os italianos, os japoneses, a família internacional, mas o maior orgulho era o seu grande amor, o Dado, mais de setenta anos juntos, pouco mais consigo escrever sobre isso sem me esvair em lágrimas, fica para outro dia,

ainda queria falar do piano, quando era bailarina e não havia pianista nos ensaios, lá saltava ela, nunca soube ler uma nota, e tocava qualquer música que lhe pedissem de ouvido, à moda antiga, com saltos oitavado nos baixos e harmonias jazzísticas dos anos cinquenta, as cadências finais sempre uma substituição tritónica, desculpa a especificidade, leitor, nem ela sabia o que isso era, simplesmente tocava, o que quisesses, e sempre em fá maior, eu ficava horas a ouvi-la, a pedir outra, toca aquela, 

foi a primeira dos meus avós a morrer, depois de uma vida preenchida de 91 anos, àquele monte de filhos e netos juntaram-se ainda duas bisnetas, passou na quarta para o descanso merecido, o luto é uma coisa estranha que vem por ondas, e embora eu nunca vá esquecer-me dela, há dias que as memórias pedem para serem eternizadas fora de mim, e onde melhor do que aqui

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